Os movimentos da vida

Ter uma vida meia nômade traz ciclos, etapas, movimentos tanto materiais como emocionais. Preparações para partir, preparações para voltar! E é nesse movimento de volta que me encontro nesse momento. Data marcada pra voltar, coisas pra resolver enquanto o ano que virou meses, vira semanas e agora vira dias! Teimo em confiar e tentar me entregar (um eterno exercício!) aos ciclos da vida, por causa das razões que os olhos, a mente e muitas vezes até o coração, em um nível consciente, desconhecem.

Como já mencionei nesse post aqui pude no final do ano passado, ainda no começo no inverno e do ano sabático, re-encontrar a querida Hélène Vadeboncoeur autora e pesquisadora em um lindo evento comemorativo. Depois disso trocamos alguns e-mails e ela mencionou a possibilidade de fazer uma visita de um Hospital de Nível Secundário em sua região que é segundo ela um dos Modelos de um Novo Paradigma de Assistência no Québec e um dos melhores lugares para parir. Com o agravamento e falecimento da minha sogra infelizmente tive que interromper por um tempo o contato com Hélène. Qual não foi minha surpresa quando recebo uma mensagem no começo de julho me convidando para a visita pois além de mim um obstetra brasileiro membro do Colegiado da ReHuNa estava de férias visitando a região e queria conhecer algum Serviço Obstétrico por aqui. Esse médico é o Dr. Bráulio Zorzella que eu conhecia apenas vagamente de nome por ver seus posts no Facebook.

Lá fomos nós então! Busquei Bráulio pela manhã no seu Hotel e seguimos rumo a pequena cidade de Dunham perto da fronteira americana com o Estado de Vermont. Logo pela manhã uma surpresa, Hélène me telefona e avisa: “Não poderemos ir visitar o Hospital, hoje pela manhã saiu em um jornal de grande circulação na Província uma noticia relacionada a morte de uma mãe e um bebê nesse Hospital em maio passado!” Menciono esse fato não por terrorismo. Acredito, como bem colocou a parteira e fotógrafa Hariette Hartigan, que parir seja tão seguro quanto viver. E isso significa uma naturalidade mas também um realismo na minha maneira de enxergar, viver e prestar Assitência ao parto. Não existe vida sem risco assim como não existe parto sem risco. Mas temos a possibilidade de escolher como viver e como parir dentro dos limites do possível e de uma necessidade primária de auto-preservação e preservação da Espécie. Isso tudo significa também encarar a gestação, o parto e o pós-parto imediato, mas sobretudo o parto como um portal, um rito de passagem. Portal esse onde se misturam de maneira profunda vida e morte, dor e delícia. Como eu já disse antes não existe infelizmente nenhum lugar no mundo atualmente onde as taxas de mortalidade materna e neonatal sejam nulas.

Mesmo com um Modelo de Assistência “ideal” e adequado uma pequena porcentagem de mães e bebês ainda morrem e isso em qualquer local (domicilio, hospital, casa de parto, centro cirúrgico). Infelizmente tanto no Brasil como em outros lugares do mundo os Sistemas de Assistência ao Nascimento de tipo Primário e Secundário sofrem constantes ataques e pressões da parte da Mídia e das Associações Profissionais Médicas mesmo sendo comprovado estatisticamente que suas taxas de mortalidade não são mais elevadas que  as dos Sistemas Terciários. Por isso a Equipe pensava que não iriamos conseguir visitar o Hospital de Brome-Missisquoi-Perkins da pequena cidade de Cowansville naquele lindo dia de verão. Eles antecipavam o dia cheio de ataques da Mídia e por tanto não teriam tempo pra receber-nos.

Seguimos mesmo assim para a casa de Hélène na esperança de possivelmente visitar uma Casa de Parto também em uma Municipalidade vizinha. Alí desfrutamos da linda vista à beira do lago, da Natureza sempre linda exuberante e do acolhimento e companhia calorosa de Hélène.

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Hélène havia conseguido em poucas horas um Plano B: uma visita à uma Casa de Parto em uma cidade próxima, Sherbrooke. Durante o almoço nova surpresa: ligação do Hospital Brome-Missisquoi-Perkins para avisar que finalmente poderiam receber-nos! Finalmente o artigo em questão contestava do fato de que o pai tendo perdido a mulher e o filho, não tinha mais direito à Licença Paternidade e não atacava o Hospital. Finalmente eles estavam tendo um dia mais tranquilo que previsto! Seguir os movimentos da vida: sem problemas para uma parteira e um obstetra humanizado!

O Pavilhão dos Nascimentos (Pavillon des Naissances) do Hospital Brome-Missisquoi-Perkins é um Centro Obstétrico situado dentro de um Hospital de Assistência Secundária ou Média Complexidade em Saúde totalmente público. Isso significa que o Hospital está equipado com um Centro Cirúrgico mas não tem Assistência Terciária ou de Alta Complexidade (UTIs por exemplo). No caso da necessidade de Serviços de Alta Complexidade há uma transferência para Hospitais Especializados de Nível Terciário em Montreal que se situa á mais ou menos uma hora e meia de estrada.

O Pavilhão dos Nascimentos tem 8 quartos PPP (pré-parto, parto e pós-parto) sendo que 1 deles tem uma cama de casal (na foto) os outros têm uma cama hospitalar que comporta entre outros barra de cócoras e se adapta para o parto com a retirada da parte inferior. Existem 2 outros quartos na entrada do Setor que pertencem a Pediatria do Hospital mas podem ser usados também como PPP em caso de necessidade.

O Hospital foi o primeiro no Canadá a ser Certificado Amigo dos Bebês em 1999.  Hoje eles também são os primeiros Credenciados, assim como o Hospital Sophia Feldman em Belo Horizonte, com Sítio de Demonstração como Hospital Amigo do Binômio Mãe-Bebê pela IMBCI (International Mother-Baby Childbirth Initiative/Iniciativa Internacional para o Nascimento Mãe-Bebê).

A equipe dirigida pela enfermeira Christiane Charest, que guiou pessoalmente a grande maioria da visita, nos recebeu de braços abertos. Equipe essa que é composta exclusivamente de médicos de família (clínicos gerais) e enfermeiras obstétricas e neonatais (enfermeiras formadas nas duas especialidades). Outros profissionais de outras especialidades podem ser chamados em caso de necessidade inclusive pediatras, obstetras e anestesistas. Esses dois últimos se encontram de plantão em loco dentro do Hospital mas em outros Setores em horário comercial e fora dele de plantão à distância. Eles recebem uma média de 75 nascimentos por mês ou 900 por ano, têm uma taxa de cesariana de  cerca de 24% (que aumentou nos últimos anos e que Christiane diz ser uma vergonha sobre a qual eles trabalham para melhorar!), 34% de pelidurais, 15% de induções (bem mais baixo que a média nacional) e 90% de aleitamento exclusivo na alta (o que para a Província e o país é enorme).

 

A Equipe trabalha em uma base multidisciplinar visando horizontalizar as relações e os conhecimentos tanto dos profissionais entre si quanto com as famílias usuárias. Cursos sobre o Modelo de Assistência são oferecidos à todos os profissionais membros da Equipe sem exceção e também às famílias usuárias do Serviço. O Modelo de Assistência por Consentimento Esclarecido e Informado é estritamente respeitado.  Usuárias com gestação de baixo e médio risco são atendidas tanto em pré-natal como no parto. Casos de alto risco são transferidos para Montreal.

Existem várias formas de viver e várias formas de parir. Christiane em uma apresentação Power Point em seu escritório ao final da visita nos mostrou com eloquência que apesar de ser favorável ao desenvolvimento dos Serviços de Parteiras na Província e no País realisticamente, mesmo se o atendimento das parteiras conseguir atingir a meta prometida de passar de 3% da população à 10%, ainda teremos 90% das usuárias no Québec parindo em Hospitais. Por isso ela vê um Modelo como o do Pavilhão dos Nascimentos do Hospital Brome-Missisquoi-Perkins como uma possibilidade pertinente e realista dentro de um Sistema altamente medicalizado e violento com uma tendência crescente das taxas de cesariana. A cada um sua opinião e seu trabalho! Há muito o que ser feito!

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