Parir, ser mãe e ser mulher

 

 

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo”

Cora Coralina

Vivemos em uma era de radicalizações. Vejo que cada vez mais através do Planeta as pessoas e os grupos tendem à se polarizar. Quem sabe isso não seja bem novo… Quem sabe o Ser Humano desde sempre tenha tido essa necessidade de simplificar, radicalizar para que possa sentir que compreende o sentido da vida e pertence de fato à algo. Talvez por isso os jovens sejam tão propensos ao radicalismo, pela necessidade básica humana de se identificar à algo, à alguém, em busca de sua própria identidade e sentido.

Hoje cheguei a conclusão que parir, ser mãe e ser mulher são três coisas bem diferentes! Elas podem ter pontos comuns e até se cruzar de vez em quando mas são bem distintas. Até hoje ainda precisamos ser mulheres para poder parir! Mas parir atualmente por via vaginal, como desenhou a Natureza, virou no Brasil uma raridade sobretudo na classe média alta. Todos sabemos que muitos hospitais particulares brasileiros tem taxas de partos cirúrgicos acima de 80%, alguns chegam muito perto de 100%. Então a busca por um parto vaginal, e mais, por um parto natural sem violências e intervenções desnecessárias, virou um ato quase heróico no cenário nacional!

Por isso as mulheres celebram muito, com razão, quando têm esse tipo de parto. Elas celebram e o Movimento pela Humanização do Parto divulga, também com razão, os benefícios de parir como a Natureza entende. Mas a cesárea, o parto cirúrgico, não é por si só algo de negativo. Negativo em saúde materno-infantil, segundo a OMS, é ter cesáreas de menos e cesáreas demais. Considerando que negativo é quando as taxas de mortalidade materno-infantil são mais altas que deveriam ser. O Brasil paradoxalmente (que surpresa!!) entra nas duas categorias! Temos cesáreas demais nos hospitais particulares e nas classes A e B e não temos cesáreas suficientes em algumas regiões afastadas e classes sociais mais baixas onde a Assistência necessária não chega ou chega mal. Nos dois casos não diminuímos as taxas de mortalidade por razões opostas: a falta e o excesso de cesáreas.

Então vivemos dizendo: não somos contra o parto cirúrgico bem indicado, uma cesariana bem indicada pode salvar até duas vidas. Inclusive uma cesárea com indicação pode e deve ser “Humanizada”.  Mas na prática, mulheres que fizeram “tudo direitinho” nessa busca heróica por um parto digno (concepção consciente, exercícios pré-natais, alimentação sã, cursos pré-natais, equipe humanizada, parto domiciliar, etc, etc) e que têm uma cesárea bem indicada (por vezes humanizada outras não) acabam se sentindo ostracizadas. Eu infelizmente não estou exagerando! Já ouvi mais de uma mulher, em mais de um contexto, em mais de um lugar relatar esse sentimento.

Na cabeça de muitas pessoas do “Movimento pela Humanização do Parto” existe, e é difundido consciente ou inconscientemente, um certo e errado, um preto e branco de realidades definitivas. Se uma mulher do “Movimento” fez todos os atos heroícos associados à tentar um parto natural “humanizado” (que aparenta ser a garantia da solução para todos os males da Humanidade) hoje no Brasil e mesmo assim acabou com uma cesariana com uma indicação não muito precisa (por exemplo parada de progresso) as pessoas tendem a pensar duas coisas: a mulher ou então a equipe fez algo de “errado”. Isso é fato!!! O “Tribunal do Parto Normal Humanizado”, fiel a sua forma de realidades definitivas, ouve mais ou menos e depois julga! E as mulheres sentem isso, não tem como não sentir. E nós parteiras também sentimos!

Outra realidade é que um parto que foi planejado para acontecer em casa, onde houve um investimento massivo de tempo, energia e dinheiro, onde criou-se um vínculo com a equipe e um sonho do “parto ideal,” e que termina em cesariana gera um processo muito profundo e complexo de luto. A mulher é claro que vai viver esse luto mais intensamente. Porém nós profissionais também vivemos um processo de luto. Nós também passamos por sentimentos intensos: será que eu fiz tudo o que podia, será que eu poderia/devia ter feito algo diferente, será que eu fiz algo de errado? E à isso adicionamos, durante e após as transferências, experiências por vezes profundamente antagônicas e agressivas com nossos colegas que não aprovam nossas escolhas de Assistência e não compreendem um Paradigma de Assistência diferente do deles. A mulher vai se perguntar e viver as mesmas coisas e também a muitas vezes mais doída pergunta: será que há algo de errado comigo? E como o processo de luto traz entre outros sentimentos raiva e tristeza, muitas vezes essa raiva é direcionada à equipe. E ao invés de aproveitar o processo para um crescimento e aprendizagem mútuos perdemos tempo martirizando-nos ou acusando-nos junta ou separadamente. Por que muitas vezes questões profundas e difíceis de lidar são acionadas dos dois lados.

A verdade é que estatisticamente e em um mundo com uma Assistência ideal uma parte minoritária ( 5-20%) dos nascimentos terminarão em cesarianas. Outra verdade é que estatisticamente, também nesse mundo do atendimento ideal, uma pequena porcentagem de partos terminarão em óbitos isso seja onde for (hospital, casa, centro cirúrgico, etc). Infelizmente hoje nem nos sistemas de atendimento mais ideias não conseguimos erradicar a morte no parto. Quem sabe um dia cheguemos lá, mas por enquanto podemos fazer somente o possível. E o possível inclui entre outros uma cesariana bem indicada mesmo se a indicação não era ainda muito explicita (ex: parada de progesso e exaustão materna). Se sabemos que isso tudo é normal e real por que não queremos falar disso? Onde está a dificuldade?

Face ao processo difícil vivido tanto por mim como pelas mulheres que atendi que acabaram com uma transferência e/ou uma cesariana, organizei algumas vezes grupos de apoio para que os sentimentos fossem exteriorizados e compartilhados. Vi como isso ajuda todo mundo no processo. Uma dessas mulheres, em seu processo pessoal de luto depois de uma cesárea decorrente de uma transferência de um parto domiciliar, primeiro se afastou de mim e de todos. Depois fez suas próprias pesquisas e trabalho pessoal. Ela encontrou pela internet e decidiu participar de um grupo chamado Homebirth Cesarean International. Depois de entender algumas coisas ela voltou, estudou para ser doula, participou de um encontro do grupo de apoio e criou o seu próprio grupo de apoio no Facebook.

O Homebirth Cesarean International (HBCI), que eu conheci graças á essa mulher, tem feito um bom trabalho em um assunto muito delicado. Elas publicaram entre outros dois livros: “Homebirth Cesarean: Stories and Support for Families and Healthcare Providers e “Healing from a Homebirth Cesarean. Uma das sugestões que elas fazem é que os profissionais que trabalham com parto domiciliar abordem o Plano B de transferência e também o que elas chamam de Plano C em caso de cesárea. Muitos profissionais se questionam sobre o ato de abordar o tema de uma possível cesárea no acompanhamento pré-natal. Será que não vamos minar a confiança dessa mulher que tão heroicamente se investe de corpo e alma na busca de um sonhado parto natural em condições tão adversas? Conversando com mulheres que tiveram uma cesárea após uma transferência de um parto domiciliar em um Fórum de discussão da HBCI a parteira americana Amanda Roe chegou a seguinte conclusão: “Eu conheço tantas mulheres naquele grupo que gostariam que sua parteira pudesse ter olhado diretamente em seus olhos e dito algo como: “Um nascimento por cesariana no seu caso não é o desfecho mais provável mas é um desfecho possível, e eu serei sua parteira e ficarei com você mesmo se eu não for a pessoa que receberá o seu bebê”.

Ouço muitas mulheres relatando o sentimento de se sentir “menos mulher” por não ter parido vaginalmente. Todo sentimento merece ser escutado. Em seguida o ideal é que possamos olha-lo de frente e explorar o que ele quer nos dizer. Por que entre a realidade da vida e a realidade do que sentimos pode haver um mundo inexplorado que vai nos ajudar a crescer e viver melhor. Pode parecer paradoxal mas uma das minhas professoras mais sensíveis as questões emocionais das mulheres que ela atende não é mãe e nunca pariu. Ela é uma mulher sensível, trabalhada, carinhosa e competente no que se dispõe a fazer. Pensem bem e olhem a sua volta: quantas mulheres que conhecemos não são mães? Será que elas são “menos mulheres” por isso? Quantas mães exemplares que conhecemos nunca pariram e talvez nem gestaram? Ser mãe, ser mulher e parir são três coisas distintas, são vias que em pleno século XXI temos o luxo de escolher ou não percorrer ou ainda com qual profundidade.

Vi vários bebês nascidos de cesariana intraparto que pegam o peito imediatamente com gana e mamam com facilidade depois disso também. Já vi vários bebês nascidos de partos domiciliares “perfeitos”, os “partaços” que o pessoal costuma contar por aí, que não querem mamar imediatamente e que em seguida têm um processo de amamentação complicado! Já vi o oposto também! Já vi mulheres que tiveram cesáreas e que se enamoram imediatamente de suas crias enquanto vi outras que tiveram parto domiciliar demorarem um pouco pra reconhecer e se acostumar com a dança interna e externa gerada pela presença daquele novo Ser em sua vida! E já vi o inverso! Ou seja: somos seres complexos! E mais: a maternidade como a gestação e o parto são danças à dois! Abracemos a  beleza da complexidade e a heterogeneidade da vida sem exceções!

“Porque toda a humanidade nasceu de uma mulher
Toda a humanidade veio de uma mulher
Porque toda a humanidade nasceu de uma mulher
Toda humanidade veio de uma mulher

Então me encare finja que já me conhece
Sou forte aparentemente mas valho como toda gente
Fique aqui tome alguma coisa converse pra se distrair
Vai ver que sou uma menina que é capaz de lhe fazer feliz

Quero te ver se você quiser
Quero ver você se você vier
Só vou te ver se você quiser
Só ver você se você vier”

Vanessa da Mata, mulher e mãe de três filhos sem ter parido

 

 

Entrevista pela Terra

Este post é uma homenagem. Uma singela homenagem à uma amiga querida. Minha amiga Catherine é uma das responsáveis pelo fato d’eu trilhar hoje o caminho no mundo do parto, nascimento e das parteiras. Ela foi a primeira pessoa a me falar ao mesmo tempo de assistência de parteiras e experiência de parto positiva. Foi ela também que me apresentou à Liga La Leche e à criação com apego. Minha singela e carinhosa homenagem a essa mulher que tem toda a minha admiração e carinho. A versão original da entrevista em francês está nesse post, como sempre a tradução livre é minha! Agradeço a generosidade de ter aceito me dar essa entrevista. Agradeço também a confiança, a clareza e a honestidade das respostas. Catherine, você é e sempre será para mim um exemplo de mãe, mulher e ser humano a ser admirado.

Sem mais delongas aqui vai:

-Você poderia se apresentar?

Eu me chamo Catherine. Sou mãe de duas meninas: Nadia que tem 19 anos e Valentine que tem 7 anos. Eu moro em Montreal com meu companheiro Filipe e com a Valentine; Nadia já saiu de casa. Eu trabalho como psicóloga junto a adultos e adolescents. Eu me especializo em terapia de casal e transtornos alimentares.

Você poderia nos contar de maneira breve os seus partos?

Meus partos foram separados por um período de 12 anos. Eu pude vivênciar o primeiro como uma jovem mulher, aos 20 anos, e o segundo como uma mulher mais madura aos 32 anos. Minhas filhas não têm o mesmo pai. Do ponto de vista fisiológico, meus dois partos foram similares (os dois foram rápidos e intensos, o primeiro durou por volta 6 horas e o segundo por volta de 7 horas). Não houveram complicações, eu pari as duas vezes na mesma Casa de Parto mas não com a mesma parteira. Porém a minha relação com as duas parteiras foi bem diferente: da primeira vez eu gostava bastante da minha parteira e tinha confiança nela emocionalmente. Da segunda vez eu mal a conhecia (ela estava substituindo uma outra parteira) e não havia esse vínculo de qualidade. Eu tinha confiança nas competências dela mas mesmo assim isso não me deixa o mesmo tipo de lembrança.

Jaqueline

-O que te levou a escolher os serviços de parteiras para os seus partos?

Eu havia lido um livro sobre o parto natural que me inspirou, então eu sabia que esse tipo de serviço existia e eu tinha ouvido falar das parteiras. Porém, eu fui mesmo assim a uma primeira consulta com uma obstétra, eu pensava que seria provavelmente bom, mas essa mulher me pareceu seca e insensível: a primeira consulta durou no máximo 10 minuos e acho que ela nem mesmo sorriu. Em seguida eu procurei uma parteira que passou muito mais tempo comigo e foi mais atenciosa, ela parecia muito mais interessada no que eu vivia. Não havia nenhuma comparação, na verdade. O contraste era enorme. Na época, em 1995, as Casas de Parto no Quebec eram um Projeto- Piloto, era novidade. Eu me lembro que tinha um ambiente bem agradável. Nos sentíamos imediatemente acolhidas, á vontade, em casa. Depois da primeira consulta com a parteira a escolha era clara: eu nunca mais me questionei.

-Quais foram as diferenças entre o primeiro e o segundo acompanhamentos? Você preferiu um dos dois? Se sim porque?

Sim houve mais química com as parteiras na primeira vez. A primeira parteira estava de férias durante o meu parto, mas eu conhecia bem a que estava presente no meu parto por que eu a tinha visto várias vezes e eu gostava bastante dela. Essa parteira tem até hoje um lugar especial no meu coração. Ela não pôde fazer o acompanhamento do meu segundo bebê, o que me deixou bem decepcionada. Meu segundo acompanhmento foi feito por uma parteira que se chamava Jaqueline. Eu não gostava nem um pouco da substituta que trabalhava em parceria com ela, que eu conheci em uma consulta apenas. Então foi decidido que se Jaqueline não pudesse estar presente no parto (o que aconteceu), uma outra equipe de duas parteiras me assistiria. Eu as vi uma vez cada uma antes do parto. A parteira que finalmente esteve presente no meu parto era de modo geral boa mas não existia vínculo entre nós. Eu me lembro que ela fez um comentário sobre as posições que eu escolhia dizendo que elas eram menos eficientes e isso me magoou. Pelo menos ela não atrapalhou o processo. Ela foi bem discreta e me deixou sozinha com meu companheiro nas primeiras horas. Ela esteve mais presente no final. Era como se ela fizesse o estrito mínimo. Eu não a sentia envolvida emocionalmente. Ela estava “fazendo seu trabalho”, só isso. Ela não foi uma fonte de apoio emocional para mim.

Na época do meu segundo parto em 2007, as Casas de Parto já eram mais conhecidas e havia mais demanda. Muitas mulheres não conseguiam um lugar. Tinha muito mais gente nos cursos pré-natais, eu me lembro que tive dificuldade de encontrar uma cadeira para sentar. Eu fui apenas uma vez e não voltei por que estava tudo muito caótico. As parteiras também pareciam organizadas de uma forma diferente. No primeiro parto em 1995 eu simplesmente precisava ligar para a minha parteira quando o parto começasse. No segundo, em 2007, haviam “plantões”, então eu não sabia ao certo qual parteira estaria presente. Eu devia ligar para um serviço telefônico de resposta automática que me diria qual parteira estaria de plantão naquele momento. Então foi uma experiência muito menos forte do ponto de vista humano, muito menos personalizada. Definitivamente não foi a mesma coisa.

-Você recomendaria a assistência das parteiras do Quebec às suas amigas? Porque?

Sim mas com um bemol. Eu não sei como estão os serviços em Casa de Parto em 2015, meu último parto ocorreu há 7 anos e eu imagino que possivelmente possam haver tido mudanças desde então. Os serviços são com certeza mais acolhedores e personalizados que no Hospital onde na maioria das vezes as mulheres nunca encontraram anteriormente o pessoal que vai lhes prestar assistência. No Hospital “caímos” em uma pessoa gentil ou não, é realmente uma questão de sorte, pelo que eu ouvi dizer. Também tem o fato da filosofia diferenciada das parteiras que encaram o parto como um processo natural, elas são menos intervencionistas, o que é uma coisa muito boa. Mas eu não poderia garantir a minhas amigas que elas teriam um vínculo com sua parteira e isso é realmente lastimável. Eu imagino que por vezes o vínculo esteja presente e por vezes não, mas isso não me parece ser mais uma prioridade para as parteiras. Enfim, essa foi a impressão que a minha segunda experiência me deixou.

Trust

-Porque, na sua opinião, a assistência das parteiras no Quebec progrediu tão pouco nos últimos 20 anos desde a introdução desse serviço no Sistema de Saúde Público (atualmente a porcentagem de usuárias desse serviço ainda não atingiu 10% da população sendo que sabemos que a demanda se situaria á pelo menos 25%)?

Eu não acompanhei muito bem a situação depois do meu segundo parto, talvez por que minha experiência tenha me decepcionado e eu tenha me desenvestido. Tem certamente uma questão de formação, eu creio que muito poucas parteiras são formadas e isso explica em parte o problema. Eu estou bem convencida que os médicos também colocam entravas às parteiras, pois eles não querem perder a clientela e seus poderes especiais.

-O que é a Liga La Leche para aqueles que não a conhecem?

A Liga La Leche é um Organismo Internacional de apoio ao aleitamento materno. As monitoras são voluntárias e amamentaram seus bebês. Eu fui monitora voluntária durante 13 anos de 1996 à 2009. O que é especial com a LLL é que ela faz a promoção de um tipo de maternagem (que poderíamos chamar de “attachment parenting”, “criação com apego”) e não somente conselhos técnicos sobre amamentação. Ela encoraja as mães (e pais) à estarem a escuta de seu bebê, à responderem ás suas necessidades, à não ter medo de mima-los em pega-los no colo e em amamentando-os várias vezes seguidas e/ou longamente. Essa mensagem me ajudou muito como jovem mãe pois meu bebê era sensível e exigente, ela queria estar sempre no meu colo e ser amamentada com frequência também. Eu ouvia muito que eu iria mima-la, então ouvir da LLL que o que eu fazia era correto foi verdadeiramente importante para mim. Isso de deu confiança nas minhas capacidades de mãe. E isso também me permitiu conhecer outras mães, pois aos 20 anos, a maioria das minha amigas ainda não tinha filhos. O isolamento é um problema sério que vivem muitas novas mães. Nossa sociedade é mal feita nesse sentido.

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-O que você mais gostou durante os anos que você trabalhou junto da LLL?

Um pouco a mesma coisa que eu gostou agora como psicóloga: eu gosto de ter o sentimento de ajudar e eu gosto de ter a oportunidade de encontrar e acompanhar as pessoas durante um período importante e vulnerável de suas vidas. Eu gostava de ver os bebês crescerem quando as mães vinham com eles nas reuniões mês após mês. Algumas mães eu não esquecerei nunca. Um dos momentos mais bonitos foi durante uma das reuniões da LLL: uma mãe que eu já conhecia, pois ela tinha vindo ás reuniões quando estava gestante, mas ela tinha acabado de ter seu bebê que eu então via pela primeira vez. A primeira coisa que ela fez chegando, sem nenhuma hesitação, antes mesmo de me dizer uma palavra, foi de colocar o seu bebê no meu colo. Isso me tocou tanto, uma prova de confiança tão bonita. Eu ainda fico emocionada quando lembro.

Enquanto ser humano, mãe, mulher e profissional o que pra você foi a lição mais importante da maternidade?

A maternidade me trouxe e me traz ainda minhas mais belas alegrias e meus maiores sofrimentos. Eu digo sofrimentos por que minha filha mais velha, que hoje tem 19 anos, se recusa a me ver e falar comigo fazem agora quase dois anos. Eu acredito que ela tenha sido vítima de alienação parental, que é um fenomeno que eu não conhecia antes de sua partida em 2012. Mesmo se eu lhe dei tudo que eu pude na vida e que eu a amei e a amo ainda de todo meu coração, é possível que ela não volte nunca, talvez eu a tenha perdido. Eu não acreditava que isso pudesse nos acontecer, nós tinhamos uma relação tão bonita. Eu penso em amigas minhas que perderam seus filhos: uma amiga quando seu bebê tinha 5 dias. Uma amiga que perdeu sua filha de 1 ano e dois meses por causa da síndrome de morte súbita, uma outra amiga que perdeu sua filha de 13 anos para a leucemia. Minha avó que perdeu 5 filhos na pequena infância. Minha outra avó que perdeu um bebê no parto. A maternidade tem esse potencial terrível de nos fazer viver os maiores sofrimentos. No começo da minha vida de mamãe, eu acreditava que algumas coisas pudessem me “proteger” de certa forma. Um belo parto natural, amamentar minha filha, responder ás suas necessidades, tudo isso me parecia uma espécie de garantia. Com o tempo e a experiência eu me dei conta que não há garantia, nem mesmo algo perto disso. Eu posso dar o melhor de mim, dar tudo que tenho, dar todo o meu amor e isso não garante nada. Isso dá medo! É também uma grande lição de humildade. Bem-vinda a raça humana: ninguém está protegido das grandes tristezas. Agora eu julgo menos, eu entendo melhor o sofrimento dos outros. Como eu compreendi que não há garantias na vida, o fato de amar me parece ainda mais belo: ver que as pessoas amam apesar de toda a incerteza. Que seja amar seu filho ou uma outra pessoa, é sempre um risco enorme (eu vejo isso também em terapia de casal!) Ao mesmo tempo, a maternidade, mais do que qualquer outra coisa, é o que dá um sentido à minha vida, e eu sou tão feliz e tão sortuda de ter podido vivencia-la. Existem muitas mulheres que gostariam de ser mãe e não podem. Não podemos esquecer a sorte que temos de viver esse tão grande amor.

Love

 

 

 

 

 

 

Mudar Paradigmas

Eu adoro ler! Adoro um bom livro. Estou conseguindo nesse momento da minha vida ler bastante e sobre temas variados. Graças ao maravilhoso Sistema de Bibliotecas Públicas do Québec! Que benção! Como isso é bom, um sistema de bibliotecas públicas é tudo pra quem gosta de pensar e/ou ler! Junto com a Internet então, fechou!!

Estou me deliciando com o livro “The Power of Women” da parteira norte americana cherokee Sister Morning Star da qual eu já falei nesse post anterior (esse eu comprei na Conferência da Midwifery Today e vai para a minha biblioteca de empréstimos, na minha salinha de atendimento querida em Brasília, aguardem!). Estou sorvendo as palavras de Sister ou Estrella, dependendo de onde ela esteja, como quem sorve uma boa xícara de chá (que eu adoro!) quentinho! Aos poucos me deliciando com o que ela chama de “medicina da palavra”. Aliás eu quero corrigir as palavras da Benção Cherokee que ela ensina! Eu escrevi, no post em questão, de lembrança apenas mas no livro está escrito como ela nos ensinou: “May you live long enough to know why you were born”, “Que você viva o suficiente para saber porquê nasceu”. Essa benção é feita sob a luz do sol ou da lua dependendo do momento que a criança nasceu.

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Algumas palavras do livro que me tocam: “The psycho-spiritual-emotional-cultural aspects of a woman far outweight her physical nature; they actually create it.”  “Os aspectos psico-espiritual-emocional-cultural de uma mulher de longe ultrapassam sua natureza física; na verdade eles a criam.” p. 8  “Sometimes babies design a mother’s birth.” “Por vezes bebês desenham o parto de uma mãe.” p. 14

Agora vamos mudar de livro! O livro “The Structure of Scientific Revolutions”  “A Estrutura das Revoluções Científicas” é um Clássico no mundo acadêmico! Clássico assim mesmo com C maiúsculo! Meu marido acadêmico em Ciências Políticas quando viu o livro na minha mesa de cabeceira esclamou: “Você está lendo Kunh?!” Sim, também estou lendo e me deliciando com Kunh, sorvendo a medicina das palavras dele! Esse livro dá pra achar em PDf por aí, viva a Internet!!

Pra quem ainda não sabe, Thomas Kunh é o pai da noção de Paradigma Científico e Mudança de Paradigma. Ele escreveu sobre isso em 1962 e o trabalho ainda é A referência nesse tema. Um pouco das palavras de Kunh: “Paradigms: Universally recognized scientific achievements that for a time provide model problems and solutions for a community of practitioners” p. X. Tenho em mãos uma versão em inglês do livro, existe uma tradução em português, porém vou fazer minha tradução livre por aqui, perdoem-me! “Paradigmas: conquistas científicas universalmente reconhecidas que por um tempo provêm problemas modelos e soluções para uma comunidade de praticantes.”; ” (…) the more certain they [the historians of science] feel that those once current views of nature were, as a whole, neither less scietific nor more the product of human idiosyncrasy than those current today. If these out of date beliefs are to be called myth, than myths can be produced by the same sorts of methods and held for the same sort of reasons that now lead to scientific knowledge. If on the other hand they are to be called science, then science has included bodies of belief quite incompatible with the ones we hold today. (…) Out-of-date theories are not in principle unscientific because they have been discarded.” p.2. “(…) quanto mais certeza eles [historiadores científicos] têm de que aquelas visões da natureza correntes em uma certa época foram, como um todo, nem menos científicas nem mais o produto da idiosincrasia humana do que aquelas correntes hoje. Se essas crenças depassadas devem ser chamadas de mito, então mitos podem ser produzidos pelos mesmos tipos de métodos e retidos pelos mesmos tipos de razões que hoje levam ao conhecimento científico. Se por um outro lado elas devem ser chamadas de ciência, então a ciência já incluiu conjuntos de crenças um tanto incompatíveis com as que temos hoje. (…) Teorias defasadas não são em princípio não científicas  por que foram descartadas.”

No começo do mês de março fiz um seminário de um dia com a semiologista Stéphanie St-Amant aqui em Montreal. Foi mais um reencontro. Stéphanie e eu fomos colegas no Grupo MAMAN na mesma época, aquela do processo de legalisação das Casas-de-Parto de da profissão de parteira no Québec na segunda metade dos anos 90. Estamos nessa há um tempinho! O seminário se intitulou: “História crítica das práticas obstétricais e sua rationale”. Também gosto de ir á lugares, formações e de encontrar ou reencontrar pessoas que gostam de refletir. Não me interessa se essas pessoas venham da mesma especialidade, formação ou classe social que eu. Aprecio boas reflexões mesmo não necessariamente concordando com elas contanto que exista respeito e apreciação mútua. Trocar sempre soma!

Stéphanie colocou muitas coisas. Mas passou um bom tempo sobre a noção e a concepção da obstetrícia de datação da gestação. Ao longo da história chegando até hoje. Porque datação específicamente? Por que hoje no Québec (do qual ela fala mais especificamente) e no mundo existe uma tendência crescente nas induções de parto (farmacológicas ou não).

Recentemente na Mídia e nas Redes Sociais têm se falado muito sobre a segunda gestação e parto por vir  da Duquesa de Cambridge. E circulou nas Redes Sociais esse artigo sobre a questão de pós-datas e indução no caso da célebre Duquesa. E aí os ativistas do parto humanizado compartilham dizendo: olha aí, podemos esperar e pós-datismo não é indicação de cesárea! E os médicos (não necessariamente os cesáristas) compartilham dizendo: olha aí, mas se a gestação virar de risco vai precisar das intervenções X, Y Z e estamos aqui pra isso! E no mundo atual, não só no Brasil, a segunda visão está ganhando! E as induções aumentando e as cesárias também! Mas será que as duas visões não podem trabalhar juntas?

Por um outro lado têm gente muito otimista! Gente que está aí na luta pela “Humanização” como novo Paradigma de Assistência ao nascimento há décadas (20, 30 anos) que diz que as coisas no Brasil mudaram e muito! Veja essa entrevista da Mater TV com a Enfermeira Obstétrica baiana Mary Galvão por exemplo. E mesmo assim os índices globais de cesárea continuam a subir no Brasil e no resto do mundo. Enquanto isso experiências específicas em diversos lugares do mundo, inclusive no Brasil, mostram que é  de fato possível ter os famosos índices de 15% de cesárea sugeridos pela OMS de maneira segura utilizando adequadamente a tecnologia de ponta do século XXI , tecnologias antigas, milenares e recursos humanos treinados (formalmente ou não) para atuar em diversos escalões da Assistência (primária, secundária e terceária).

Do que se trata então? Como essa “Mudança de Paradigma” pode se fazer de maneira efetiva sem deixar ninguém de fora?  Ainda continuo refletindo, lendo Sister Morning Star e Thomas Kuhn, no momento! Ainda me questiono sobre que Paradigma Novo é esse que queremos e até onde a “Medicina Baseada em Evidências” é tão científica e tão maravilhosa quanto pretendemos…

Independente de concordar ou não ideológica ou filosóficamente com alguém, posso apreciar uma vontade genuína de contribuir para o avanço do Ser Humano nesse planeta. E por isso mesmo discordando de muita gente do “Movimento pela Humanização do Nascimento” (que está longe de ser um conjunto homogêneo de pesoas) continuo dialogando e trabalhando em parceria, de perto e de longe com essas pessoas. Muitas vezes tenho a impressão de que os profissionais médicos (médicos, enfermeiras, etc)  têm uma aversão viceral, quase que irracional a nós parteiras! Sobretudo á aquelas sem formação formal. E isso escapa a minha compreensão! Dois, ou mais, Modelos de Assistência distintos podem viver em paz, podem muito bem colaborar trabalhando juntos pelo bem comum. Não precisamos todos pensarmos igualzinho, sermos iguaizinhos! Isso é possível basta vontade e humildade suficientes de todos os lados.

Cito aqui para terminar um outro pensador, não pelo seu pedigree que é enorme e incontestável, nem por suas orientações políticas, que são sempre por natureza questionáveis, mas por traços que eu admiro em alguém; a capacidade de pensar e a coragem (que vem de cor, coração, lembram?) de dizer o que precisa ser dito: “Em um longo discurso sobre problemas enfrentados pelo Brasil, o ministro [Roberto Mangabeira Unger] criticou o modelo atual de ensino. Ele disse que um novo projeito nacional tem de ser produtivista e nacionalizador e vir acompanhado de uma revolução na educação pública. “Nosso ensino público é uma imitação do ensino francês do século 19, baseado em decoreba. Nosso método de ensino é uma camisa de força dogmática. É hora de tirar essa camisa de força”, afirmou.”

Pensemos e ajamos juntos e juntas, com sensatez e coragem, tiremos nossas camisas de força pelo bem de todas e todos e a felicidade geral!

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